Um traço primordial da chamada revolução científica ocorrida no Ocidente entre os séculos XVI e XVII consistiu na superação da dicotomia que, desde a antiguidade, opunha a episteme – a ciência, o saber teórico – à techne (a técnica, o saber prático). A ciência moderna, que então emerge, não convalida tal dissociação. Cada vez mais, daí em diante, o conhecimento teórico propiciará fundamentos para a ação prática, residindo nesse enlace o núcleo da noção, igualmente moderna, de políticas públicas. Mas, como se sabe, o enlace é, para não fugir à regra, ao mesmo tempo profícuo e conflituoso. Teoria e prática nem sempre convivem em harmonia, e os níveis de tensão do relacionamento que mantêm se revelam visíveis e intensos quando se trata da intervenção estatal sobre o cotidiano das pessoas. Ou seja, quando se trata de políticas públicas.
O livro de Liliana Acero, Pesquisas e Terapias com Células-Tronco: governança, visões sociais e o debate no Brasil, é altamente esclarecedor das disputas e contradições que rondam não só o progresso da ciência como, sobretudo, a utilização do mesmo para melhorar a vida humana em sociedade. Resultado de acurada investigação realizada com apoio da Faperj e do CNPq envereda pelos bastidores de um tema extremamente atual e polêmico, desvelando as inúmeras dimensões do debate em torno do mesmo. Contudo, apesar de contemplar dimensões diversas desse debate, considerando as especificidades que guardam – as questões da bioética e da institucionalidade regulatória, por exemplo, podem ser enfocadas em suas singularidades – a autora não perde o fio da meada. O eixo de sua análise, respaldada pelo repertório conceitual das ciências sociais, reside justamente no caráter político que perpassa todas as manifestações da discussão, esteja ela no campo da genética, da ética, da saúde, da economia, da justiça social.
Não há neutralidade na esfera da política. Intervenções governamentais, por mais que se apresentem como técnicas, exprimem correlações de interesses; os sofisticados saberes que lhes conferem aparência de solução também embutem antagonismos. A possibilidade de que a ciência moderna – episteme mais techne – sirva à expansão da equidade, à inclusão social e à universalização do bem estar se encontra no aprofundamento da democracia. Essa é a mensagem geral que, a partir do estudo de um emblemático caso particular de avanço científico, Pesquisas e Terapias com Células-Tronco: governança, visões sociais e o debate no Brasil oferece ao leitor.
Prof. Maria Lúcia Werneck Vianna
Decana do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) – UFRJ
Coordenadora do Laboratório de Economia Política da Saúde (Leps) – UFRJ
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