Com Pescadores do petróleo, Deborah Bronz nos apresenta etnograficamente ao mundo contemporâneo do chamado desenvolvimento participativo, através do estudo de um caso específico – a relação entre empreendimentos petrolíferos e pescadores na Bacia de Campos, RJ. Esta etnografia cuidadosa e aguçada tem como estratégia analítica a descrição minuciosa e contextualizada de um evento típico (uma audiência pública, parte do processo de licenciamento ambiental, segundo o rito administrativo preconizado pela legislação brasileira) e de outras situações sociais. Ao fazê-lo, a autora nos expõe alguns dos dilemas éticos, metodológicos, políticos e profissionais do exercício da antropologia na sociedade complexa que é a brasileira, em especial em tempos de retomada de crescimento econômico sob os signos de um "novo" desenvolvimentismo.
Estudos a partir de eventos e rituais têm sido comuns nas pesquisas sobre os segmentos em posição diferencial e superior em matéria de poder em relação ao antropólogo. É fácil de entender as razões: por vezes o etnógrafo só tem acesso mesmo à fachada, no sentido goffmaniano, do mundo social desses setores sociais e é lendo na entrelinha dessas representações, sem acesso aos bastidores, que o antropólogo tem de proceder para desenvolver sua interpretação. No caso do presente estudo, todavia, há uma importante diferença: como muitos dos jovens antropólogos que se profissionalizam e se formam ao nível de pós-graduação, Deborah Bronz, por ter atuado como pesquisadora trabalhando para consultorias em projetos de desenvolvimento de larga escala, ao partir para a pesquisa que fundamenta este trabalho, levava consigo uma bagagem de outra natureza. Se como todo antropólogo ela teve de se distanciar desta constelação social específica – aquela onde orbita o licenciamento ambiental como conjunto de normas, práticas, redes de agentes e agências dos quais os consultores são um tipo social dentre muitos outros -, ela também teve de se afastar de suas práticas anteriores, vê-las com outros olhos, para imergir neste caso específico.
O resultado nos apresenta à complexidade de situações onde novos atores sociais se misturam a atores há muito presentes na cena política contemporânea no Brasil, e a refraseamentos de situações e lutas que têm se instaurado sob os quadros do desenvolvimentismo participativo. A análise de intervenções industriais em projetos de larga escala, pioneiramente realizada no Brasil por Gustavo Lins Ribeiro, é aqui retomada sob outro ângulo: aquele que parte da indagação sobre o Estado e suas margens. O livro nos coloca frente às reais possibilidades de "participação democrática" no desenvolvimento participativo preconizado na legislação ambiental brasileira, seu alcance e possibilidades, bem como limitações e armadilhas. Coloca-nos, portanto, a partir de vivências concretas de participação democrática e consultas informadas frente a frente ao que é a democracia brasileira contemporânea.
Tudo isto é feito tendo como pano de fundo a indústria petrolífera e sua presença no mar, algo que mais recentemente a mídia governamental tem apresentado como alavanca do futuro. Com Deborah aprendemos sobre as reelaborações dessa presença pelos pescadores artesanais e, além destes, como atuam a empresa petrolífera, gestores governamentais, consultores, especialistas etc. O licenciamento ambiental enquanto prática de governo toma corpo aos nossos olhos. Nada mais atual para um momento em que tantos e tantos processos administrativos dessa natureza estão em curso Brasil afora, numa avassaladora onda de "progresso" por vezes até desejada e invocada, na expectativa de superação da pobreza neste país tão desigual, por aqueles que acabam por mais sofrer que se beneficiar com o crescimento econômico.
Retrato de transformações profundas em nosso país, Pescadores do petróleo permite-nos ultrapassar as crenças fáceis, as certezas na democracia, nos movimentos sociais e outras tantas crenças, bem como dá-nos a dimensão das condições em que o fazer antropológico delas participa com seu próprio arsenal de certezas historicamente construídas. Tal modo de fazer antropologia, que não esconde nem secciona as reais condições de sua produção na contemporaneidade, mostra-nos o quanto todos estamos imiscuídos nesse cenário mais abrangente. De certo, será um apoio fundamental na superação de visões de um otimismo apriorístico ingênuo ou de posições regadas a "pessimismo sentimental" retórico, um alento para a formação de novos profissionais em temas que, em geral, a comunidade universitária tem dissociado do ensino de nossa disciplina, um avanço na reflexão sobre as fronteiras – existentes porque criadas ativa e contextualmente e não por "decreto intelectual" – entre Estado, mercado e sociedade.
Antonio Carlos de Souza Lima
Laced/Museu Nacional-Ufrj
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