O dizer do indizível
Obrando en autos, obrando en vidas, de María Gabriela Lugones, apresenta-nos um minucioso e contundente estudo da administração estatal de menoridades em seu exercício cotidiano nos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba, Argentina, nos começos do século XXI.
Com precisão e capacidade crítica, a autora dá-nos diversas mostras do que a antropologia pode aportar ao estudo de problemas sociais de tão profundo teor moral como os da infância e da adolescência, cuja incontornável precariedade, está sempre imersa na dimensão do indizível. Lugones nos conduz, em texto de notáveis qualidades argumentativas, a nos defrontarmos com as técnicas (não só judiciais) de gestão de menoridades, aquelas que se analisadas se mostram muito pouco “técnicas” e muito mais instrumentos sutis de uma micropolítica, em nada redutíveis às práticas da “grande política”, essa que é espetacularizada nos jornais e noticiários televisivos. Mas a autora o faz movendo-se contra as marcas de campos discursivos pautados por posturas de cunho “militante” e denuncista, que em geral, denuncia o já sabido, diz o já dito, e dá suporte à manutenção das hegemonias presentes.
Assim, o que Lugones chama de vulgata dos direitos da criança acha-se aqui, ela própria, sopesada. E é por isso que podemos seguir no texto rumo a um mundo que, no panorama geral da Argentina, varia e tem muito a ser descrito ainda, espaço aparentemente inelutável e pouco significativo. Nele a ideia de um Estado totalizante e potente, e a suposta condensação de violências que está contida nessa contrafação do poder, sai engrandecida – ganha uma “maioridade” imerecida, eu diria, mesmo quando denunciada à exaustão – e todos os demais a ela subsumidos, inclusive aqueles que acreditam na “mágica do Estado”, se veem minorizados. Os dispositivos postos em ação, e as práticas pelas quais se opera a constituição de sujeitos assujeitados, são, pois esquadrinhados e apresentados à nossa avaliação e debate neste livro.
Por meio de uma pesquisa intensa, pautada na melhor tradição de observação participante/participação observante de nossa disciplina, somos conduzidos a olhar – e a sentir – essa dimensão dos fazeres e saberes estatais que jazem entranhados em nossas vidas diárias produzindo assimetrias sem as quais não reconheceríamos “o mundo como ele é”. Mas se a chave etnográfica da pesquisa é o trabalho de imersão no espaço dos Tribunais de Menores, tal labor, pautado na intersubjetividade, não prescinde de um conhecimento amplo dos arquivos. Tais arquivos guardam esses duplos transmutados em papel e prenhes de linguagem jurídico-administrativa que são os processos (expedientes), onde jazem as cenas administrativamente construídas sobre a qual a gestão dos tribunais opera.
O trabalho empírico quer em arquivos, quer pela via da interação face a face, da qualidade da do presente não se faria sem o recurso ao melhor da produção antropológica em diálogo com a das outras ciências sociais. Lugones cita exatamente o necessário a construir sua interpretação, e essa precisão é o que demonstra o trabalho reflexivo prévio e subterrâneo à análise, assim como o extenso levantamento de literatura sobre as questões que aborda, em especial a produzida na Argentina.
O resultado de tal densidade analítica nos é apresentado sob a forma de um texto sólido e meticuloso enquanto artefato literário, que partindo da reelaboração de uma tese de doutorado em antropologia, constitui-se numa demonstração de autoria, no melhor sentido da palavra, trabalho que é de uma profissional madura, tanto pronta para fazer, quanto para ensinar a fazer. No livro, que nos transmite os climas dos corredores, balcões, salas de audiência, escritórios desse mundo dos tribunais onde vicejam as práticas de poder tutelar que a autora investiga e descreve com rigor e criatividade, vemos avançar, com suas contribuições, as conquistas de um amplo circuito de pesquisadores. Mais ainda: ficamos com a marca da honestidade intelectual da autora que numa visão generosa e abrangente não se/nos deixa escapar à percepção das fragilidades desses mesmos exercícios de poder, que por vezes juntamente com o espanto que nos causam, sublimamos em indiferença, em solidariedade retórica e circunstancial, em aversão indignada e politizada, sem que saibamos como agir de outras maneiras. O indizível está, portanto, plenamente dito. Não há aqui o “conforto” do silêncio.
Ao desencantar tal mundo, Maria Gabriela Lugones nos apresenta não só uma fina etnografia onde dados e teorias estão inexoravelmente entretecidos, mas também relances das possibilidades de (nossa) saída dessas tramas de poder, criadores e criaturas delas que somos. Julgo que esse é o passo inicial de qualquer mudança, e a razão de ser da produção intelectual per se.
Antonio Carlos de Souza Lima
Laboratório de Pesquisas em Etnicidade,
Cultura e Desenvolvimento (LACED)
Departamento de Antropologia, Museu Nacional – (MN/UFRJ)
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