Este livro foi concebido originalmente como parte de uma publicação na qual se encontrava um pequeno conjunto de ensaios historiográficos. À medida que as referências ao processo de produção do conhecimento eram feitas, ocorreu-me a ideia de registrar algumas impressões sobre as repercussões que tiveram em minha geração e nos meios por mim frequentados, além de juntar situações existenciais. A junção de dados relativos ao conhecimento histórico e de áreas afins com a memória resultou num texto que provisoriamente chamaria de “ego-historiografia”. Deixei fluir o texto tal como me ocorria, ao tecer comentários e ao anotar dados que me pareciam relevantes para a história de minha formação profissional na área de história. Como a evolução dessas anotações tinha naturalmente se centrado na primeira pessoa surgiu o título deste livro História, uma história, algo como uma simbiose do coletivo com o individual.
Focalizo essencialmente a historiografia e seus elementos complementares, questões relativas ao método, as correntes teóricas e filosóficas inerentes à sua concepção e, como dado adicionalmente pouco comum em escritos acadêmicos, elementos de cunho pessoal, no sentido de fornecer ao leitor informações sobre uma experiência de aquisição e relação com o saber produzido. Algo como uma espécie de “auto-história”, cuja precedência nos registros historiográficos é ainda residual senão quase inexistentes. Assim, a ego-historiografia só é possível fazer-se através de uma auto-história. Valho-me aqui do que dissera Hobsbawm quando do prefácio escrito para o seu livro Tempos interessantes, que de certa forma influiu na confecção deste. Diz ele logo no início: “Quem escreve autobiografias precisa também ler autobiografias”. E mais adiante: "O que busco é o entendimento da história, e não concordância, aprovação ou comiseração… desde que tomei consciência de ser historiador (…) observei e ouvi durante a maior parte dela, buscando entender a história de meu próprio tempo."
Desculpando-me pela absoluta falta de modéstia recorri a um autor que me desse a tão necessária autoridade para poder desfrutar do beneplácito do leitor. Afinal, como historiador marxista – e tenho me esforçado para não comprometer essa filiação – preciso apoiar-me em alguém que ateste a validade de um trabalho que se propõe a recuperar a memória de um conhecimento, que fluiu vigorosamente ao longo de uma geração, e que se encontra no presente momento anestesiado pela profusão de discursos a invalidá-lo. E contra essa tentativa julgo no dever de contestá-la com base em argumentos racionais e calcados basicamente em minha memória de um conhecimento mais ou menos sistematizado, mas, sobretudo, coerente com a tradição iluminista responsável pela formação dessa geração histórica.
É um trabalho em que a história e a historiografia figuram como elementos de apoio à narrativa. Mas é firmado numa convicção e, por isso mesmo, eu o denomino de uma abordagem “impura”, tal qual concebe aqueles que acreditam nas ideias como formadoras de opiniões, no intuito de julgar acontecimentos e comportamentos que digam respeito à humanidade. O termo eu também o tomo emprestado a Astrojildo Pereira, primeiro a utilizá-lo para definir seu livro, um conjunto de ensaios sobre autores e problemas referentes à sociedade brasileira. Penso que esse tipo de abordagem não desqualifica seu conteúdo, salvo para os que sustentam que a história independe do sujeito e se encontra acima dele e, assim, deve ser preservada. A estes o conteúdo pode, pelo menos, sugerir a curiosidade de conhecer um transgressor das ditas normas cultas do saber histórico.
Escrevo para os interessados em história. Eu os convido a acompanhar-me nessas reflexões. Aqui evitarei as citações em demasia, senão as que forem absolutamente necessárias, porque o objetivo dessas linhas é discorrer sobre a história e seu significado, sem o peso da erudição, – até porque o autor não seria a melhor fonte para esse intento – e o formalismo dos trabalhos acadêmicos. A essas linhas acrescento alguns comentários de leituras que influíram em minha formação e nos de minha geração, além de fatos e situações vividas para que o leitor se situe ao tempo dessa trajetória.
Os mais de 40 anos de magistério me possibilitaram compreender o quanto é tortuoso desenvolver ideias sobre um fenômeno que nos é tão intensamente experimentado. Minha primeira convicção de que o estudo da história me era não apenas interessante, mas necessário, ocorreu quando estudante. Foi quando participei do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), antes Plano, desenvolvido que fora pelo educador Paulo Freire sob os auspícios da administração municipal de Natal (RN) do prefeito Djalma Maranhão, e que contou com o concurso do também educador Moacyr de Góes. Naquela capital nordestina foi implantado o projeto bem-sucedido intitulado “De pé no chão se aprende a ler”, alfabetizando em poucas horas centenas e centenas de analfabetos e pondo-os em condições de votarem e, com isso, influírem nos destinos políticos da região e depois do país, quando o presidente João Goulart nomeou Paulo de Tarso para o Ministério da Educação e Cultura (MEC), a quem coube transformar aquela experiência numa política de âmbito nacional. Com Paulo Freire aprendi que o conhecimento da realidade auscultando os seus membros é muito mais importante do que toda e qualquer erudição. O povo produz sua história e qualquer intervenção visando elevar a sua condição de vida passa necessariamente pela apreensão de sua vida, seus anseios e necessidades, vocabulário e tudo quanto possa fornecer dados substantivos para a ação social e política. Nascia, naquele momento, a perspectiva da história que tanto acalentava, mas não sabia exprimir.
O apêndice incluído ao final do livro pareceu-me necessário para dar um apanhado de minha trajetória como autor de textos históricos, e contextualizar os vários momentos de uma produção acadêmica e também existencial no campo do discurso escrito. Talvez a inclusão desses dados de autoria se fizesse mais necessário ao término de uma carreira, quando se admite a elaboração de algo como uma “biobibliografia”. Para o leitor, posso de antemão dizer que a leitura dessas linhas conclusivas do livro é dispensável, ou pelo menos supletiva, em relação ao conteúdo principal.
SUMÁRIOde Francisco José Calazans Falcon
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