A dinâmica da globalização e as transformações do capitalismo contemporâneo colocam uma série de desafios teóricos para se pensar o espaço das políticas públicas, os sujeitos que as produzem, as noções de cidadania que deveriam norteá-las. O poder do capital global investiu na totalidade da vida social e parece não deixar mais nenhum espaço alternativo. Os sistemas de proteção social herdados da era industrial, ou que se pretendia moldar naquela perspectiva (por meio do desenvolvimento nacional), estão submetidos a uma fragmentação sistemática. Ao mesmo tempo, se o capital ocupou todos os espaços e todo o tempo de vida, cada um desses elementos já constitui um momento de resistência e de luta. Diante da fragmentação social, uma multiplicidade de sujeitos sociais consegue resistir e construir novos espaços de luta para construção de novos mundos, outros mundos são possíveis.
Os processos de interlocução entre as diferentes esferas da sociedade, movimentos sociais, organizações governamentais e não governamentais, formam constelações essenciais para a construção de novos caminhos e, ao mesmo tempo, colocam novos desafios para a definição das esferas de gestão da políticas públicas, do papel dos novos governos, da relação complexa entre governo e movimentos. As redes de cooperação e comunicação que mobilizam diferentes movimentos sociais são uma prefiguração potente desse deslocamento – populações tradicionais, agricultores, extrativistas, quilombolas, índios etc. – na Amazônia, mas também os trabalhadores que atuam nos meios de comunicação, idéias, imagens, afetos, moda, marketing etc. nas grandes metrópoles. A diversidade dos sujeitos articula novas formas de luta e novas formas de organização.
A região amazônica está atravessada pelo conjunto dessas transformações e, ao mesmo tempo, está no cerne delas. Ela se constitui, pois, em um ponto de vista perspectivo privilegiado para essas reflexões. É hoje uma das principais áreas de interesse do mundo por constituir uma riqueza diversificada e complexa, tanto em sua biodiversidade quanto na sócio-diversidade (vista, na maioria das vezes, como uma grande reserva para o mercado internacional, sem respeito a suas particularidades e dinâmicas próprias). Porém, suas dinâmicas locais e regionais são constantemente desterritorializadas por não se encontrarem em correspondência com suas práticas sócio-produtivas locais. Estudar essa realidade faz-se urgente e necessário, não perdendo de vista que ela está articulada nos níveis local, regional e global, sob uma dupla lógica, aquela construída na contraface do domínio.
Para responder a este desafio, vem-se buscando cooperações político-institucionais, como mostra o resultado deste trabalho que teve o apoio do CNPq (Fundo Setorial de Infra-Estrutura-CT-Infra/PADCT), tendo em vista responder às novas demandas e constituir competências capazes de produzir informações e conhecimentos, assim como, ações efetivas e avaliação de experiências locais. Nesta direção, o projeto intitulado Gestão Local e Políticas Públicas na Amazônia é um exercício efetivo na perspectiva de ampliação e consolidação da reflexão teórico-metodológica, em que a cooperação interinstitucional mostra, em primeiro lugar, a rica produção de conhecimentos dos grupos de pesquisa da UFRJ; e, em segundo lugar, a potencialidade dos grupos da UFPA em desenvolver competência teórico-técnica no processo de investigação da realidade local.
A cooperação técnico-científica entre os grupos de pesquisa abriu espaço para a produção de conhecimentos, assim como para possibilidades de desdobramentos desse fecundo movimento de trocas de experiências. Os textos que aqui apresentamos constituem um conjunto diversificado de reflexões sobre esses desafios e suas implicações teóricas e práticas.
As ações entre os grupos de pesquisadores tiveram como foco o estudo e a problematização da realidade amazônica sobre as novas dinâmicas da reestruturação produtiva e das relações internacionais no contexto da globalização dos mercados, da competitividade e suas repercussões na divisão internacional do trabalho. Por outro lado, as discussões sobre os fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social e suas relações com as políticas públicas e a gestão local, articulam-se em dois eixos temáticos distintos, quais sejam: 1) o da produção e reprodução da vida social e; 2) das políticas públicas, políticas sociais e Serviço Social.
Acreditou-se que tal perspectiva teria a contribuir para a identificação das contradições imanentes aos processos que se colocam como objeto de estudos e pesquisas na atualização de seus sujeitos constituintes, das diferenças e diversidades. Essas problemáticas subsidiaram as discussões e avaliações das diferentes políticas públicas na Amazônia, bem como as experiências de ensino, pesquisa e extensão dos cursos de graduação e pós-graduação em Serviço Social.
Este movimento entre os grupos de pesquisadores contribuiu para dinamizar o debate teórico-acadêmico e técnico-político desenvolvido no interior dos grupos de pesquisa consolidados e não consolidados, fortalecendo a rede de cooperação entre as instituições. Uma rede de cooperação que implicasse reunir estratégica, sistemática e continuamente os grupos de pesquisa em andamento nos programas de pós-graduação, visando potencializar a produção de conhecimentos, ampliar a possibilidade de discussão, de crítica e verificação de consistência das pesquisas desenvolvidas e em desenvolvimento.
Não é intenção reproduzir neste espaço a rica experiência que se realizou em todo o desenvolvimento deste projeto, mas destacar dois resultados significativos: o primeiro foi a construção de página web para o projeto, acessável pelo endereço http://www2.ufpa.br/ppgss/Projeto_UFPA_UFRJ/index.html; o segundo, é o presente livro, que traz um conjunto significativo de artigos produzidos conjuntamente entre os pesquisadores de ambos os grupos.
Vale destacar que o significado desta publicação expressa o esforço coletivo de compreensão de uma problemática pertinente ao Serviço Social, tanto do ponto de vista de seus fundamentos teóricos e metodológicos, quanto nas possíveis alternativas de implementação de novas experiências na gestão de políticas públicas de âmbito local/regional. Porém, preservando um sentido declaradamente transparente ao Serviço Social, qual seja, o do pensamento crítico, seja porque este contribui para o avanço da pesquisa e da produção de conhecimentos na profissão, seja por permitir a apropriação de temáticas que transcendem seu âmbito. Com o intuito de garantir esta coerência é que o conjunto de artigos apresentados traz o pensamento crítico como base de referência e fundamentação, além de, ao mesmo tempo, favorecer o debate e a polêmica ao apresentar em seu contexto diferentes abordagens e construções teórico-analíticas.
Assim é que apresentamos o plano desta publicação, que tem início com o artigo “A investigação para o serviço social e os processos de produção do conhecimento” de Yolanda Guerra e Helder Boska de Moraes Sarmento, cuja proposta é introduzir o leitor à lógica da cooperação, destacando a necessária institucionalização dos grupos de estudos e pesquisas em um primeiro momento, para em seguida apresentar os fundamentos teóricos-analíticos que se consolidaram como elementos constituintes dos grupos envolvidos, referindo-se à investigação enquanto um momento vital para a produção de conhecimentos em Serviço Social.
O segundo texto, “Serviço Social e Método – a contribuição do pensamento marxiano” de Fátima Grave Ortiz, inscreve-se no âmbito dos debates e reflexões que tratam dos fundamentos do Serviço Social, em particular do debate acerca do método marxiano, suas categorias e sua processualidade.
O terceiro texto “Da Família Moderna à Modernidade da Família: Um Caminho não percorrido/terminado”, de Carlos Alberto Batista Maciel, traz a reflexão sobre os aspectos do caminho que vai da família moderna à modernidade da família, para contribuir na compreensão da complexidade desta trajetória, uma vez que a relação entre sociedade-família-indivíduo está longe de ser harmônica e sem conflitos, especialmente na realidade contemporânea em que imputa-se velozmente a corrosão da representação da condição social do homem em favor do individualismo exacerbado.
O quarto texto, “Poder, poderes”, de autoria de Simone Sobral Sampaio, posiciona-se criticamente ao afirmar que não tem sentido falar sobre Gestão Pública e Poder Local sem falar de democracia, sob pena de que o espaço público retome sua forma original como lugar dos interesses econômicos, como espaço dos negócios burgueses, como implicação de uma vida dominada pela ditadura do mercado, um contínuo crescimento da miséria; torna-se, portanto, imprescindível, combater esse quadro, reinventar permanentemente o processo democrático.
Em seguida, o texto “Trabalho e Natureza na Amazônia”, de Giuseppe Cocco e Maria José Barbosa, coloca como ponto de referência a própria Amazônia, interrogando o sentido de discutir as transformações do trabalho que estão na base da emergência do que podemos chamar de ‘capitalismo cognitivo’, em um território onde o capitalismo industrial nunca chegou. A Amazônia é pensada criticamente como “o” território que, paradoxalmente, é atravessado por temas locais e globais, ao passo que, por mais dramáticos que possam parecer seus impactos e conseqüências, a partir da virada pós-industrial do capitalismo das redes, pode-se constituir em um novo leque de oportunidades, longe das tradicionais clivagens que solapam as possibilidades de se pensar os embates e desafios desta região.
O sexto texto “Desenvolvimento local e novo municipalismo na Amazônia”, de autoria de Gerardo Silva, dá continuidade aos temas anteriores, mas traz um tom de originalidade ao propor um debate atual sobre uma tendência tão desgastada ao longo de nossa história brasileira e amazônica. Sua novidade reside na possibilidade de reconhecer os diferentes atores e graus de organização e participação na vida pública, bem como sua capacidade de criar práticas de resistência, de inovação e de produção no território, estruturando-se em torno de atividades produtivas. É nesta dinâmica que a governance apresenta-se como novo horizonte de organização institucional das práticas produtivas, envolvendo necessariamente a geração de espaços de expressão e participação direta dos movimentos que a compõem e que precisam ser levadas em conta.
O sétimo texto, “Planos Diretores no Brasil: notas sobre Rio de Janeiro e Belém”, de Maria de Fátima Cabral Marques Gomes, Maria Elvira Rocha de Sá e Sandra Helena Ribeiro Cruz, rearticula a temática das políticas públicas ao buscar, a partir da experiência da cooperação, analisar alguns elementos histórico-empíricos obtidos em observação recentemente realizada, no Rio de Janeiro, junto ao Fórum de Acompanhamento do Plano Diretor e, em Belém, junto ao Fórum Metropolitano de Reforma Urbana (FMRU). São traçadas, além disso, algumas especificidades que marcam o conteúdo e debates públicos acerca da elaboração de Planos Diretores que, no Brasil, se dão pela associação entre este instrumento de planejamento e a superação de desigualdades econômicas, políticas e sociais materializadas no espaço urbano e regional.
O oitavo texto, “O dilema das políticas públicas na Amazônia brasileira e a particularidade do Serviço Social no estado do Pará”, de autoria de Maria Antônia Cardoso Nascimento e Vera Batista Nogueira, articula as problemáticas regionais com os elementos teóricos necessários à interpretação das políticas sociais e seus desdobramentos no Serviço Social, a partir da análise do processo histórico, político e econômico da Amazônia, evidenciando, por meio de alguns indicadores sociais, o dilema das políticas públicas, particularmente no estado do Pará. As autoras destacam ainda o papel do Serviço Social em face das demandas postas pelos principais segmentos sociais demandantes das políticas governamentais.
O nono texto, “Fluxos migratórios na Amazônia. Algumas evidências a partir do caso do município de Santarém”, de Leonora Corsini e Solange Gayoso, articula a problemática das migrações com as questões do desenvolvimento do território, questões estas que dificilmente podem ser deixadas de lado quando se discute pobreza e desigualdade.
Finalmente, dando continuidade a uma reflexão teórica e conceitual sobre as migrações, o texto “Migrações: exército industrial de reserva em escala global?” de Patrícia Daros recupera a discussão teórica, problematizando a categoria marxiana de Exército Industrial de Reserva a partir de uma releitura crítica à luz das transformações produtivas do capitalismo contemporâneo.
Acreditamos poder, com este conjunto de reflexões, expressar minimamente alguns dos estudos, pesquisas e debates sobre os desafios que se colocam sobre SERVIÇO SOCIAL, GESTÃO LOCAL E POLÍTICAS PÚBLICAS NA AMAZÔNIA e que marcaram esta experiência de cooperação entre os Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Pará, possibilitado pelo CNPq.
Hélder Boska de Moraes Sarmento
Maria José Barbosa
Hélder Boska de Moraes Sarmento e Maria José Barbosa
Yolanda Guerra e Hélder Boska de Moraes Sarmento
Fátima Grave Ortiz
Carlos Maciel
Simone Sobral Sampaio
Giuseppe Cocco e Maria José Barbosa
Gerardo Silva
Maria de Fátima Cabral Marques Gomes, Maria Elvira Rocha de Sá e Sandra Helena Ribeiro Cruz
Maria Antônia Cardoso Nascimento e Vera Lúcia Gomes
Leonora Corsini e Solange Gayoso da Costa
Patrícia Daros
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