Estudos nos Gerais Mineiro
interlocuções de pesquisas acadêmicas
Andréa Maria Narciso Rocha de Paula
Daniel Coelho de Oliveira
Rômulo Soares Barbosa
Organizadores
Rio de Janeiro, 2022
© Andréa Maria Narciso Rocha de Paula, Daniel Coelho de Oliveira e Rômulo Soares Barbosa, 2022.
Todos os direitos reservados a Andréa Maria Narciso Rocha de Paula, Daniel Coelho de Oliveira e Rômulo Soares Barbosa. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores.
Impresso no Brasil.
ISBN 978-65-87065-53-3
Conselho Editorial
Carlos Rodrigues Brandão (Universidade de Campinas – UNICAMP)
Fausto Makishi (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG)
João Cleps Junior (Universidade Federal de Uberlândia – UFU)
Revisão
Larissa Marum
Foto de capa
Elisa Cotta
Diagramação
Michelly Batista
Disponível no site da Editora E-papers
http://www.e-papers.com.br
Avenida das Américas, 3.200 bloco 1 sala 138
Barra da Tijuca – Rio de Janeiro – Brasil
CEP 22.640-102
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
E85
Estudos nos gerais mineiro : interlocuções de pesquisas acadêmicas / organização AndréaMaria Narciso Rocha de Paula , Daniel Coelho de Oliveira , Rômulo Soares Barbosa. – 1.
ed. – Rio de Janeiro : E-papers, 2022.
154 p. : il. ; 23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-87065-53-3
1. Planejamento urbano – Minas Gerais (MG). 2. Minas Gerais – Biodiversidade. I.
Paula, Andréa Maria Narciso Rocha de. II. Oliveira, Daniel Coelho de. III. Barbosa, Rômulo Soares.
22-81359 CDD: 307.3416098151
CDU: 316.334.56:711.4(815.1)
Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB-7/6643
Sumário
APRESENTAÇÃO 5
CAPÍTULO 1
O VIVIDO E A LUTA PELOS DIREITOS:
O RECONHECIMENTO DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA 11
Ana Flávia Rocha de Araújo | Andréa Maria Narciso Rocha de Paula
CAPÍTULO 2
URBANIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO:
CONTRIBUIÇÕES DA AGRICULTURA URBANA 25
Cristh Ellen Ferreira Pinheiro| Hélder dos Anjos Augusto Cledinado Aparecido Dias | Giliarde Souza Brito
CAPÍTULO 3
HOMENS E DEUSES: COMIDAS E OFERENDAS PARA AS DIVINDADES 41
Fábio da Silva Gonçalves | Daniel Coelho de Oliveira
CAPÍTULO 4
JUVENTUDE RURAL DO ALTO RIO PARDO: REPRODUÇÃO SOCIAL CAMPONESA NO NORTE DE MINAS GERAIS 69
Erika Fernanda Pereira de Souza | José Paulo Pietrafesa
CAPÍTULO 5
DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO INTERIOR DE MINAS GERAIS; UM ESTUDO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA DE SELEÇÃO UNIFICADA (SISU) NA UNIMONTES 89
Mônica Maria Teixeira Amorim | Emília Murta Morais | Maria Jacy Maia Velloso
CAPÍTULO 6
VAZANTEIROS DE PAU DE LÉGUA: A ANCESTRALIDADE E A RESISTÊNCIA NA LUTA POR UM TERRITÓRIO LIVRE 107
Júlia Veloso dos Santos | Felisa Cançado Anaya
CAPÍTULO 7
GERAIZEIROS DO ALTO RIO PARDO-MG: LUTAS POR TERRITÓRIO E INVENTIVIDADE LOCAL 125
Aldinei S. Dias Leão | Rômulo Soares Barbosa
SOBRE OS AUTORES 149
APRESENTAÇÃO
Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes."(ROSA, 2006, p. 542)1.
Essa coletânea, reúne textos de pesquisadoras e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, com um objeto de análise comum: pesquisas na região do norte de Minas Gerais.
O norte de Minas Gerais apresenta diversidade de ambientes naturais e de povos nativos que através da ocupação e manejo do território constituíram processos de saber -fazer que os distinguem através de diferentes modos de vida, culturas e identidades. Tais singularidades foram descritas na literatura de João Guimarães Rosa, que ao falar do sertão, apresentou um território com pluralidade de persona gentes carregadas de culturas, em um lugar definido como a região dos "gerais", dos "campos gerais", do "sertão", dos "sertões".
"Mas que na beira dele tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas há lá. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniões (…) O sertão está em toda a parte. (ROSA,1986, p.1)2.
Na obra Roseana, estão presentes percepções e sensações de territórios imensos, mas também de detalhes de cenários e de lugares geográficos que, entre suas muitas semelhanças e suas inúmeras diferenças refletem o sertão em toda a parte, entre o real e o simbólico que constroem uma geografia sertaneja com o sertão dentro da gente onde a profundidade dialética transforma o sertão do tamanho do mundo materializado no Norte de Minas Gerais. Uma região do semiárido, com vegetação de cerrado de veredas e buritis, com áreas de caatinga e mata seca, com grandes rios e corguinhos. Entre espaços amplos de monoculturas devastadoras e de pecuária extensiva , existem lugares de vilarejos, comunidades tradicionais, cidades, vivem povos e grupos etnicamente diferenciados na fronteira entre o rural e o urbano, entre crenças, ritos, divindades e racionalidades diversas.
O livro que apresentamos é composto de estudos que refletem essa polissemia de povos e lugares no sertão norte mineiro, frutos de pesquisas realizadas envolvendo os temas de investigações dos autores em programas de pós graduação de universidades publicas. Os temas abordados perpassam da Educação de jovens rurais, evasão escolar, comunidades e resistências de povos tradicionais, agricultura urbana e as oferendas as divindades. Organizado em sete capítulos, os autores apresentam a discussão teórica e metodológica de trabalhos que vem sendo realizados no campo acadêmico, desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social (PPGDS/UNIMONTES), no Programa de Pós-Graduação Associado UFMG/UNIMONTES em Sociedade, Ambiente e Território e no Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE/UFG).
No Capítulo 1, "O Vivido e a Luta pelos Direitos: o reconhecimento dos Povos e Comunidades Tradicionais e as estratégias de resistência" de autoria de Ana Flávia Rocha de Araújo e Andréa Maria Narciso Rocha de Paula, propõem uma reflexão sobre os povos e comunidades tradicionais frente aos processos de desenvolvimento e as consequentes estratégias acionadas por estes povos na luta por seus direitos. Amparados pelo Decreto 6040/07 que estabelece um marco legal na produção conceitual do significado de Povos e Comunidades Tradicionais, esses grupos vêm apresentando suas lutas por direitos territoriais. A opção conceitual pelo termo "comunidades" para além de abarcar as singularidades de cada povo, caracteriza um modo de vida aonde as interações cotidianas resultam num agir coletivamente. São povos que ocupam e reivindicam seus territórios tradicionais, e que lutam pelo direito de serem reconhecidos mediante a memória de seu processo de ocupação, de pertencimento a um lugar, da maneira de ver o mundo. O texto ainda enfatiza a importância dos sistemas de conhecimentos tradicionais na luta por seus direitos e como forma de vivenciar o mundo e a construção das possibilidades de resistências através de articulações entre e com os povos do lugar.
No Capítulo 2, "Urbanização e desenvolvimento: contribuições da agricultura urbana", Cristh Ellen Ferreira Pinheiro, Hélder dos Anjos Augusto, Cledinado Aparecido Dias e Giliarde Souza Brito propõem discussões sobre urbanização e desenvolvimento. Os apontamentos do texto direcionam suas reflexões para políticas públicas que abarcam cidades sustentáveis numa lógica de integração econômica, ambiental e social. Nesse sentido, os autores buscam analisar a agricultura urbana (AU) como mecanismo de desenvolvimento urbano sustentável e suas consequentes melhorias na qualidade de vida dos citadinos. A pesquisa nos permite compreender que a urbanização, fundamentada na concepção econômica, especificamente a industrialização nos moldes capitalistas, cuja sociedade obsessiva direcionou em estabelecer padrões de qualidade de vida, associada ao consumo excessivo e à apropriação irracional dos recursos naturais, permitiu a imposição da indústria na lógica produtiva, contemplando os fatores de produção exigidos pela sinergia industrial de produtividade. O texto chama a atenção para as alternativas de desenvolvimento urbano, como a agricultura urbana, a qual tem um papel determinante na requalificação do ambiente da cidade, e para a importância do diálogo entre as diversas áreas de conhecimento, que podem proporcionar a interação social, a qualidade de vida dos citadinos e, acima de tudo, equipamentos que integram as áreas verdes, de produção e lazer.
No Capítulo 3, "Homens e Deuses: comidas e oferendas para as divindades", os autores Fábio da Silva Gonçalves e Daniel Coelho de Oliveira buscam compreender a dinâmica das comidas/oferendas feitas às divindades, bem como as práticas alimentares dos médiuns, relacionadas aos fundamentos teológicos, doutrinários e ritualísticos provenientes das religiões Candomblé, Umbanda e Quimbanda, em Bocaiuva/MG. Os autores utilizam metodologicamente a pesquisa participante e as entrevistas estruturadas e semiestruturadas em terreiros com líderes religiosos e demais participantes dos cultos. De forma geral, o capítulo apresenta os processos que envolvem a comida ofertada às divindades em vários contextos ritualísticos e que dizem respeito à alimentação de adeptos das religiões em questão, tocando em pontos como predileções, quizilas, orientações espirituais e alimentação decorrente de rituais específicos.
Já no Capítulo 4, "Juventude rural do Alto Rio Pardo: reprodução social camponesa no Norte de Minas Gerais", escrito por Erika Fernanda Pereira de Souza e José Paulo Pietrafesa, é analisada a atuação de jovens egressos da Escola Família Agrícola (EFA) Nova Esperança, no município de Taiobeiras, em Minas Gerais. A pesquisa foi realizada com egressos concluintes do Ensino Médio integrado ao Técnico Profissionalizante em Agropecuária da Escola Família Agrícola Nova Esperança. O capítulo apresenta as possibilidades de atuação dos jovens egressos da EFA e os desafios que eles enfrentam, de forma especial nos processos de reprodução social e de inserção produtiva, além de conflitos e tensões ligados à relação entre educação e trabalho.
No Capítulo 5, "Democratização do Ensino Superior no interior de Minas Gerais: um estudo sobre a implementação do Sistema de Seleção Unificada (SiSU) na UNIMONTES", Mônica Maria Teixeira Amorim, Emília Murta Morais e Maria Jacy Maia Velloso analisam o processo de acesso ao ensino superior público e gratuito na Universidade Estadual de Montes Claros por meio da implantação do SiSU. O estudo do tipo descritivo com ênfase na abordagem qualitativa foi desenvolvido entre 2018 e 2020. Além da revisão da literatura temática, foram realizadas entrevistas com profissionais da universidade envolvidos na política de seleção, o levantamento de dados de matrícula e de evasão, além da aplicação direta de questionários para graduandos e estudantes evadidos.
Capítulo 6, "Vazanteiros de Pau de Légua: a ancestralidade e a resistência na luta por um território livre", Júlia Veloso dos Santos e Felisa Cançado Anaya procuram compreender as distintas formas de apropriação territorial do espaço social onde foi criado o Parque Estadual da Mata Seca em sobreposição ao tradicional território da comunidade vazanteira de Pau de Légua, no município de Manga/MG. Os conflitos ambientais e territoriais são apresentados por diferentes atores cujas territorialidades se contrapõem. Além da revisão bibliográfica, as autoras realizaram análise documental e trabalho de campo. Foram utilizadas técnicas de observação participante, entrevistas de história oral, entrevistas semiestruturadas e aplicação de questionário para a caracterização quantitativa de dados socioeconômicos e culturais. Como resultado empírico, o capítulo apresenta as consequências diretas da implementação das políticas de modernização do campo, das políticas ambientais compensatórias, do não reconhecimento e da não regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas da comunidade vazanteira pelo Estado.
Por fim, no Capítulo 7, "Geraizeiros do Alto Rio Pardo/MG: lutas por território e inventividade local", de Aldinei Sebastião Dias Leão e Rômulo Soares Barbosa, são analisados processos sociais de reafirmação identitária, de lutas territoriais e de autoafirmação de uma das categorias desses sujeitos coletivos de direito nas comunidades tradicionais geraizeiras do Alto Rio Pardo. Os autores realizam um debate sobre lutas, reivindicações e movimentações das comunidades Baixa Grande e Moreira, localizadas no município de Rio Pardo de Minas, nos processos de afirmação das suas identidades e de luta pelo reconhecimento formal e pela proteção dos seus territórios. O texto aborda importante investigação para esses sujeitos frente ao pensamento hegemônico, monocultor e globalizante que afeta a região.
Esperamos que o livro, instigue ao leitor/leitora as reflexões, debates e discussões a partir das pesquisas apresentadas e que estimule novos conhecimentos, investigações sobre as temáticas estudadas na região dos Gerais mineiro.
Fiquemos novamente com João Guimarães Rosa: "E o que era para ser. O que é pra ser – são as palavras! (ROSA, 1986, p. 37)3.
Boa Leitura!
Os organizadores.
Andrea M. Narciso Rocha de Paula, Daniel Coelho de Oliveira e
Rômulo Soares Barbosa4
CAPÍTULO 1
O VIVIDO E A LUTA PELOS DIREITOS:
O RECONHECIMENTO DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA
Ana Flávia Rocha de Araújo
Andréa Maria Narciso Rocha de Paula
Notas introdutórias
O conceito de Comunidade Tradicional tem se tornado cada vez mais recorrente nos debates e políticas públicas contemporâneas, onde os modos de vida, as formas de apropriação do espaço, os conflitos territoriais, a multiplicidade de identidades, tem traçado o olhar para esses grupos etnicamente diferenciados.
Desde meados do século XX, a temática dos povos tradicionais já se fazia presente nos mais intensos debates sobre as diferenças e singularidades dos modos de vida desses grupos. No entanto, no decorrer deste processo, inúmeras foram as tentativas de criar uma conceituação que abarcasse todas essas caracterizações dentro de um mesmo campo. Diversos pesquisadores, entre eles Almeida (2004), Barreto Filho (2006), Brandão (2012), já compreendiam a dificuldade de rotular esses grupos sociais dentro de um conceito fechado devido a presença de segmentos distintos e identitários que coexistem dentro de cada grupo.
A categoria de Comunidade Tradicional envolve o debate de elementos do campo dos direitos consuetudinários, ampliando a ideia de que a morada e/ou a presença em um determinado território por um espaço de tempo gera direitos aos sujeitos; que através do saber- fazer, das relações entre as gerações constituídas entre o homem e a natureza forjada na diferença, demarca a significação da terra enquanto pertencimento ao lugar para aqueles que a habitam.
A trajetória da luta pelo reconhecimento dos povos tradicionais e as estratégias de resistências desses grupos são objetivos da análise desse artigo, para a compreensão de que os avanços na luta pelos territórios tradicionalmente ocupados são possíveis através da leitura do vivido e para a visibilidade dos desafios e enfrentamentos do presente. Através de uma revisão bibliográfica e de análise de textos clássicos da Antropologia, foi possível aventar categorias como tradição e identidade como primordiais para o debate sobre povos tradicionais.
Povos, comunidades, terras tradiconalmente ocupadas
Até meados dos anos de 1980, pouco foram os projetos de intervenção que visibilizavam a preservação e apoio às populações que residiam em Áreas Protegidas (APs). Segundo Diegues (2004), o modelo brasileiro vigente de APs foi uma importação do modelo norte-americano, que ainda era baseado num sistema de natureza intocada e que considerava que as áreas naturais só estariam preservadas se estivessem longe das atividades e do contato humano, com uma rara exceção às atividades que estavam relacionadas ao turismo ecológico, medidas educativas e pesquisas científicas. Foi a partir deste contexto e de intensos debates, conflitos e resoluções, e de invisibilidade, que esses grupos passaram a ser reconhecidos "por seu valor conservacionista e estimadas como guardiãs da floresta" (CALEGARE, 2014, p 1).
No ano de 2004 5, foi criada a Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, vinculadas na época ao Ministério do Meio Ambiente em articulação com o Ministério da Cultura, o que pode ser considerado como marco oficial de políticas públicas. No entanto, se analisarmos o contexto geral dos Movimentos Sociais da América Latina, este é um debate antigo que vem se reconfigurando ao longo dos anos através de declarações de direitos humanos e linguísticos. São exemplos deste contexto, a declaração de direitos internacionais, a declaração dos direitos humanos, a declaração dos direitos linguísticos, a declaração da diversidade cultural6, declaração de Tlaxcala7 (1982), a Convenção da proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural8 e os dispositivos da OIT -Organização Internacional do Trabalho. (THUM: 2017, p.163).
A incorporação dos PCTs (Povos e Comunidades Tradicionais) no campo ambiental foi influenciado pela agenda ambientalista internacional, pela discussão das áreas de proteção permanente -APPs e pelas intensas mobilizações dos grupos nas diversas regiões do Brasil, sendo que comunidades indígenas da região Amazônica, comunidades quilombolas no semiárido nordestino e grupos extrativistas nas áreas de Cerrado, são exemplos de lugares onde houveram intensos movimentos de luta pelo reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais.
Para Almeida (2004), após a constituição de 1988, ganhou força o direito a diferença, no reconhecimento dos direitos étnicos, uma vez que o direito produzido pelo Estado não era o único. As Constituições estaduais, como a do Maranhão, em 1990, Bahia em 1989 e do Paraná em 1997 são exemplos de reconhecimentos dos direitos étnicos9.
Portanto, a categoria populações tradicionais, através das mobilizações dos povos pelos seus territórios, foram adquirindo maior reconhecimento como "agentes sociais, que assim se autodefinem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condição"(ALMEIDA, 2004, p 12).
A autodefinição promoveu a possibilidade do reconhecimento do estar e pertencer a um território comum. A compreensão de terras tradicionalmente ocupadas perpassava o significado do tradicional no campo das lutas passadas e presentes para a manutenção dos territórios, bem como, a luta pela retomada dos territórios: "… do que se define como "terras tradicionalmente ocupadas, em que o tradicional não se reduz ao histórico e incorpora identidades redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada" (ALMEIDA, 2004, p 29).
O território é assimilado enquanto o lugar de morada, da construção da territorialidade, compreendida através das práticas de atuação junto a natureza que são repassadas de geração em geração, o modo de viver dos povos em terras de uso comum. Na concepção de Little (2002), a territorialidade se define como "o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território" (LITTLE, 2002, p. 3). O contato com o ambiente, o cuidado com a terra, constituem o saber- fazer, e compõem uma distinção dos povos. O estar no lugar, o pertencer a terra, é uma característica para além da vivência, mas de sustentabilidade.
No ano de 2007, o Governo Brasileiro reconheceu legalmente através do Decreto nº 6040/07 a existência de diversos e distintos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT) na sociedade brasileira. O decreto foi resultado de intensos debates e da participação efetiva do Comitê de Povos e Comunidades Tradicionais, que resultou no entendimento:
Povos e Comunidades Tradicionais – grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (Decreto 6040/200710).
O Decreto 6040/07 foi um grande avanço nos debates e para o reconhecimento dos povos, sobretudo, por abarcar questões antes não mencionadas nas primeiras tentativas de definição de um conceito, como por exemplo, a vertente ambiental, as questões culturais, a autodefinição identitária e o uso dos territórios. Adentram nesta discussão aspectos antropológicos, como: os saberes tradicionais perpassados pela oralidade através das gerações, os significados e formas de fazer com/e através da natureza, a valorização da terra como lugar de vida e trabalho, a utilização do uso comum da terra e, portanto, enquanto território tradicionalmente ocupado.
Territórios Tradicionais – os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato as Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações. (Decreto 6040/2007).
Nesse contexto, o território é percebido e constituído para além do espaço social de produção e reprodução, como um elo de continuidade e de identidade dos grupos etnicamente diferenciados. No entanto, este elo não deve ser compreendido como algo fixo que denota a interação com o espaço, pois o território, assim como a tradição é dinâmico, e sofre interação interna e externa a todo o momento. Para Almeida (2004), os processos de luta pela terra e suas formas diferenciadas de uso do território, provocaram o aumento das disputas e dos conflitos nos processos de territorializações. "Com o processo de territorialização tem-se a construção de uma nova "fisionomia étnica", através da autodefinição do recenseado, e de um redesenho da sociedade civil, pelo advento de centenas de novos movimentos sociais, através da autodefinição coletiva" (ALMEIDA,2004, p.5)
A luta dos povos sempre esteve presente, seja revestida de uma autonomia identitária, seja por uma autonomia territorial. Esse entendimento deixa explícito a importância da memória do processo histórico vivenciado por esses povos, sobretudo, quando esta memória se torna uma consciência histórica e impulsiona os sujeitos em movimento de luta por seus direitos.
O pertencimento a um lugar, perpassa as gerações, e o território tradicional vai além de um espaço territorial físico habitado. O território, se faz na terra do sagrado, na terra de colheita, na terra dos mortos, nos ritos, no saber-fazer, nas festas dos santos, nas festas de plantio e colheitas, nos ritos indígenas, nas diversas e plurais formas de viver na terra e com a terra, água, fogo e ar. Assim a terra é território comum, isso a torna "propriedade comum" na medida em que se consolida um modo específico de reprodução da vida baseado nos ciclos da natureza.
Nesse contexto, os modos de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais perpassam uma reorganização do território por meio do seu uso e apropriação. A produção conceitual do significado de Povos e Comunidades Tradicionais apresenta um marco legal, que pode ser encontrado no Decreto 6040/07. Contudo, a sua validade e aplicabilidade vive em um campo de intensas disputas nas políticas públicas como aponta Almeida (2004),
O chamado "tradicional", antes de aparecer como referência histórica do passado, aparece como reivindicação contemporânea em forma de auto definição coletiva. Antes de serem interpretadas como "povos ou comunidades tradicionais" aparecem hoje envolvidos num processo de construção do próprio "tradicional" a partir de mobilizações e conflitos. Deste ponto de vista, além de ser do tempo presente, o "tradicional" é, portanto, social e politicamente construído a partir de uma classificação empírica fruto da existência localizada desses novos movimentos sociais. (ALMEIDA, 2004, p. 07).
O tradicional é intensamente dinâmico; e por ser dinâmico é forjado nas lutas pelas reivindicações de direitos violados e no contexto social e político de enfrentamento pelo direito de "existir" na concepção de sujeito de direitos, possuidor de um modo de vida construído nos conhecimentos entre gerações e na perspectiva de vida em grupo. Perspectivas que são plurais, nos contextos de vida dos povos.
O conceito de Comunidades Tradicionais se tornou debate e reflexão entre os pesquisadores. Para Brandão (2010) as singularidades ressaltadas pelo autor para a Comunidade Tradicional invocam as pesquisas desenvolvidas no Norte de Minas Gerais, e ressalta trabalhos de pesquisas de etnografia no contexto de uma região, onde os povos tradicionais estavam e estão "encurralados". O autor chama atenção que o grupo social que constitui a comunidade tradicional encontra-se no campo da disputa entre a ameaça aos direitos de estar no lugar de vida e a mobilização presente na memória, no saber e na experiência de vida com os outros e com a natureza.
Comunidade tradicional constitui-se como um grupo social local que desenvolve :a) dinâmicas temporais de vinculação a um espaço físico que se torna território coletivo pela transformação da natureza por meio do trabalho de seus fundadores que nele se instalaram; b)saber peculiar, resultante das múltiplas formas de relações integradas à natureza, constituído por conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição ou pela interface com as dinâmicas da sociedade envolvente; c) uma relativa autonomia para a reprodução de seus membros e da coletividade como uma totalidade social articulada com o "mundo de fora", ainda que quase invisíveis; d) o reconhecimento de si como uma comunidade presente herdeira de nomes, tradições, lugares socializados, direitos de posse e proveito de um território ancestral; e) a atualização pela memória da historicidade de lutas e de resistências no passado e no presente para permanecerem no território ancestral; f) a experiência da vida em um território cercado e/ou ameaçado; g) estratégias atuais de acesso a direitos, a mercados de bens menos periféricos e à conservação ambiental. (BRANDÃO, 2010, P. 37)
A produção do conceito de Povos e Comunidades Tradicionais nos mostra que foram momentos de intensas disputas entre o Estado e a Sociedade Civil. Dessa forma, podemos apreender que a luta dos Povos e Comunidades Tradicionais continuam, sobretudo, em busca da visibilidade de suas identidades étnicas e coletivas nos processos de territorialização. As disputas acontecem no âmbito das visões de mundo que colocam de um lado, os recursos naturais enquanto mercadorias, almejada pelos grandes empresários, latifundiários, fazendeiros e dos megaempreendimentos minerários e do outro lado, os povos tradicionais que vivem a natureza enquanto parte do seu existir.
Na dualidade presente do contexto socioambiental, os grupos etnicamente diferenciados são cada vez mais vítimas de violações de direitos, de violências simbólicas e físicas, da expulsão dos seus territórios.
O entendimento da comunidade tradicional, necessita da compreensão das relações estabelecidas com e fora do grupo, bem como, das mobilizações constituídas no interior da luta pelo território que é presente na atualização da memória, nas cosmografias e territorialidades, costumes, crenças, imaginários reproduzidos nas práticas sociais cada vez mais visibilizadas nos processos de territorializações.
Resistindo: estratégias de visibilidade
A emergência de uma identidade coletiva é construída pela relação entre o "nós" e o "outro", dada à diferença que exclui aqueles que não estão vinculados às semelhanças de determinado grupo social. Castells (1999), interpreta a identidade como um processo, fonte de significados, ressaltando as identidades plurais. As identidades ocorrem no contexto das relações de poder. Para Hall (2011) identidade e diferença são parte do processo de produção de classificações na sociedade. O sujeito se torna fragmentado, vivendo uma crise de identidade. Autores distintos que discutem a construção das identidades na modernidade.
A partir desse contexto, e da importância que a identidade representa para os Povos e Comunidade Tradicionais, podemos compreender a luta pelo reconhecimento dos territórios de terras tradicionalmente ocupadas, luta permanente dos grupos etnicamente diferenciados. As identidades enquanto um projeto coletivo na viabilização da luta pelos direitos. Para Almeida (2004), o reconhecimento jurídico-formal dos povos não é efetivado porque impelem as transformações na estrutura agrária brasileira, baseada nos megaempreendimentos minerários, na pecuária extensiva, e na concentração de terras, portanto a invisibilidade dos povos são parte da estratégia destes setores da sociedade.
Nesse sentido, alguns termos que tentam abarcar um contexto geral não dão conta de absorver todas as manifestações culturais, como por exemplo, o termo "agricultor familiar", "pequeno produtor". Trata-se de uma forma de homogeneizar toda a diversidade existente. De acordo com Touraine (1998).
Os movimentos societais […] são igualmente defensores da diversidade social e cultural e, portanto, também de equidade, que supõe o pluralismo da diferença, ao passo que o apelo à igualdade alimenta frequentemente uma política de homogeneização e de recusa das diferenças em nome do caráter universal da lei. (p. 127)
Partindo da reflexão realizada por Touraine (1998), podemos entender que o Estado vem traçando um caminho bem semelhante, onde ao invés de adotar uma política de identidades que atenda a diversidade dos grupos, opta por adotar uma política de homogeneização, ignorando as especificidades dos grupos sociais e tentando enquadrá-los a partir de uma mesma perspectiva social. Nesse sentido, é possível compreender que os Povos e Comunidades Tradicionais são tornados invisíveis pelo Estado, encaixando-os em políticas assistencialistas tirando o foco dos direitos que reivindicam.
Para Almeida (2004, p. 56), "as lacunas censitárias evidenciam, cada uma a seu modo, o quanto a preocupação com estas chamadas ‘comunidades tradicionais' ainda está ausente das formulações estratégicas governamentais". O desinteresse do Estado tem sido evidente, sobretudo, pelas escolhas de políticas públicas destinadas às comunidades tradicionais, pois sem a identificação destas comunidades tradicionais por meio de um evento censitário, não há necessidade e nem parâmetros […]
SUMÁRIOAPRESENTAÇÃO 5
CAPÍTULO 1
O VIVIDO E A LUTA PELOS DIREITOS:
O RECONHECIMENTO DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA 11
Ana Flávia Rocha de Araújo | Andréa Maria Narciso Rocha de Paula
CAPÍTULO 2
URBANIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO:
CONTRIBUIÇÕES DA AGRICULTURA URBANA 25
Cristh Ellen Ferreira Pinheiro| Hélder dos Anjos Augusto Cledinado Aparecido Dias | Giliarde Souza Brito
CAPÍTULO 3
HOMENS E DEUSES: COMIDAS E OFERENDAS PARA AS DIVINDADES 41
Fábio da Silva Gonçalves | Daniel Coelho de Oliveira
CAPÍTULO 4
JUVENTUDE RURAL DO ALTO RIO PARDO: REPRODUÇÃO SOCIAL CAMPONESA NO NORTE DE MINAS GERAIS 69
Erika Fernanda Pereira de Souza | José Paulo Pietrafesa
CAPÍTULO 5
DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO INTERIOR DE MINAS GERAIS; UM ESTUDO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA DE SELEÇÃO UNIFICADA (SISU) NA UNIMONTES 89
Mônica Maria Teixeira Amorim | Emília Murta Morais | Maria Jacy Maia Velloso
CAPÍTULO 6
VAZANTEIROS DE PAU DE LÉGUA: A ANCESTRALIDADE E A RESISTÊNCIA NA LUTA POR UM TERRITÓRIO LIVRE 107
Júlia Veloso dos Santos | Felisa Cançado Anaya
CAPÍTULO 7
GERAIZEIROS DO ALTO RIO PARDO-MG: LUTAS POR TERRITÓRIO E INVENTIVIDADE LOCAL 125
Aldinei S. Dias Leão | Rômulo Soares Barbosa
SOBRE OS AUTORES 149
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