Esta dissertação sobre informação, poder e política social não é uma discussão de caso, mas sim um exercício do pensamento a partir de um caso: o processo de legalização e de organização do Conselho Municipal de Saúde de Joinville, em Santa Catarina. O caso opera como espaço de encontro de acontecimentos e de conceitos, que são articulados em diferentes tópicos.
Os conselhos de saúde são uma esfera pública de deliberação das políticas de saúde em todos os níveis de governo, que sintetizam o princípio constitucional de participação comunitária no Sistema Único de Saúde e que estão regulamentados na Lei Federal no 8.142, de 28 de dezembro de 1990.
Os conselhos de saúde podem ser reduzidos a um espaço burocrático de acordos entre segmentos previamente estabelecidos, criados apenas para cumprir as exigências da legislação. Ou podem ser espaço de expressão de interesses que só são tornados públicos com ampliação da comunidade de relevância na discussão das políticas de saúde.
Esta amplitude de possibilidades compreende, em verdade, as múltiplas possibilidades de composição das forças sociais em conflito nas sociedades contemporâneas. Estes conflitos estão diretamente associados com a crise da modernidade e de suas utopias, que estão evidentes inclusive nos indicadores da qualidade material de vida da população brasileira e na ruína dos modos de representação política e sindical.
Esta dissertação não usou um método, mas articulou diversos instrumentos de trabalho que foram mobilizados de acordo com os diferentes contextos. De certo modo, pode-se dizer que o autor funcionou como um interlocutor privilegiado em todo o processo de legalização e organização do Conselho Municipal de Saúde de Joinville.
Em um cenário em que a experiência de participação nos termos da Lei Federal no 8.142/90 é escassa, o trabalho de fala na esfera pública e de encontro com diversos segmentos organizados da sociedade funcionou como uma verdadeira alavanca.
Pode-se mesmo dizer que os acontecimentos foram articulados com diferentes demandas e necessidades emergentes, produzindo um espaço de composição que canalizou poderosos interesses contra o governo municipal de Joinville. O que ocorreu foi uma composição social que, sobre o ponto de apoio do conhecimento preciso das leis, impulsionou a participação comunitária nas políticas de saúde.
O pressuposto de trabalho fundamental é a micropolítica, isto é, uma dimensão da ação política que, sem ser menor, concentra suas forças sobre temas específicos e busca a consolidação de uma base ampla de sustentação. Desse modo, foi possível aproximar os sindicatos operários das associações de moradores e das representações dos profissionais de saúde.
A ética da micropolítica abandona o fardo das grandes narrativas e a âncora dos determinismos ideológicos. A micropolítica penetra nos capilares do tecido social para compor interesses e produzir mudanças para além das formas tradicionais de representação e de governo.
A recuperação dos acontecimentos não tenta produzir um encadeamento de fatos a partir de um fio de condução de sentido que explique a priori ou a posteriori todos os detalhes de uma história que não tem origem fixa nem destino definido. Os conselhos de saúde são apenas uma perspectiva para olhar os acontecimentos e para manusear os conceitos, que se cruzam de vários modos e em vários momentos.
A estética da genealogia na construção do texto tenta fugir das prisões da história das datas e dos heróis e da geografia que se fecha para as forças que lhes são externas. A definição do período entre 02 de abril de 1990 e 31 de dezembro de 1992 no espaço do município de Joinville funciona como referência frágil de uma experiência que transcende estas demarcações.
A política de saúde opera como elemento fundamental na produção e na reprodução social moderna, quando a medicina é posicionada como um encontro de produção de saber e de exercício de poder que funciona na disciplina dos corpos e no governo das populações. A medicina acontece na sociedade, dentro dela e como instrumento de poder. É um saber da política social.
As formas da política de saúde mudam conforme as relações de forças e são, portanto, contextuais. A expansão da medicalização social corresponde ao processo de burocratização e de racionalização das esferas do mundo e da vida. Cada exercício de poder opera com dominação e com resistência, conflito que produz diferentes políticas sociais.
A participação comunitária é, por um lado, um esforço do Estado e dos seus aparelhos políticos e sindicais para legitimar a ação social, e, por outro, uma exigência da sociedade para recuperar esferas públicas onde possam ser deliberadas composições de interesses que contemplem o princípio constitucional de universalização assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os conselhos de saúde são uma proposição da legislação federal que cria um espaço deliberativo permanente das políticas de saúde. Eles devem ser compostos por representantes do governo, dos prestadores de serviços, dos profissionais de saúde e por 50% de representantes da comunidade usuária.
Os conselhos de saúde são o produto amadurecido entre a VIII e a IX Conferência Nacional de Saúde, entre 1986 e 1992. Se em 1986 os conselhos eram apenas uma miragem teórica que deveria ser consultada sobre as políticas de saúde, em 1992 foram inúmeros os relatos de experiências muito ricas em termos de cidadania, de democracia e de mudanças nas políticas sociais. Joinville pode incluir o seu caso neste último grupo.
Joinville é uma cidade industrial no nordeste de Santa Catarina, com quase meio milhão de habitantes, e que se tornou um centro urbano típico: periferia sem infra-estrutura e carregada de patologias da pobreza e um centro capaz de produzir belíssimos cartões postais das casas de enxaimel com seus jardins floridos.
A existência de grandes corporações industriais interfere nas formações subjetivas locais, particularmente pelo modo como se compõem os interesses do capital e do trabalho. A existência de mais de 80 mil operários industriais evidencia o poder de um certo feudalismo industrial nas relações sociais.
É no espaço dessa colônia alemã invadida por migrantes em busca de empregos nos últimos quarenta anos que se situam os acontecimentos de nosso caso de experiência com os conselhos de saúde. O período em que se passam os acontecimentos vão da promulgação da Lei Orgânica do Município até o fim do mandato do governo municipal que tanto se opôs à legalização e à organização do Conselho Municipal de Saúde.
Nosso relato não tem heróis, não tem cronograma de eventos, assim como tenta mostrar que não existe exatamente uma origem, do mesmo modo que não afirma o que acontecerá com o Conselho Municipal de Saúde criado. Ele tanto pode se posicionar como espaço público de expressão de interesses sempre desestabilizadores, como pode se transformar em uma máquina burocrática de filtro seletivo das demandas e das necessidades sociais.
O caso dá o que pensar. E duas são as trilhas que seguimos para tentar articular os conceitos com os acontecimentos. Por uma via, estudamos a ética da discussão de Jurgen Habermas. Por outra, estudamos a microfísica do poder de Michel Foucault e a micropolítica de Félix Guattari.
Essas duas trilhas seguem paralelas e talvez só se encontrem no infinito. Não existe a preocupação de produzir uma síntese que explique e capture todos os acontecimentos em uma lógica de sentido. Existe sim o agenciamento do desejo no espaço dos conselhos de saúde enquanto exercício ético de uma micropolítica que exigiu discussão e argumentação.
Os conceitos de ética em Habermas e Guattari abandonam os núcleos de dogmas morais e se situam como exercícios sociais que querem operar com transformações no campo da subjetividade, seja pela comunicação orientada pelo entendimento, seja pela formação das máquinas de guerra produtoras de singularidades.
Não estamos preocupados com os conflitos que os próprios autores produzem entre suas teorias. O Habermas desta dissertação talvez não se reconheça no próprio autor alemão, assim como o Guattari talvez não seja o analista francês. Existem aqui extrações e colagens de conceitos de acordo com o interesse desta dissertação, muitas vezes fora do lugar para o qual foram criados.
É assim que podemos reproduzir longos trechos de citações dos autores sem que estejamos necessariamente reproduzindo a aproximação de conceitos supostamente originária. O que existe presente é o desejo de ir além das fronteiras das estratégias do poder, das burocracias restauradoras, e tentar encontrar as linhas de fuga, de diálogo e de singularização subjetiva.
O pensamento vai além do próprio território sugerido pelo caso, pois sabe que existem apenas esboços de uma existência menos ameaçada pela mediação racional e tecnológica. Ao mesmo tempo, não se está obcecado em tentar reencontrar uma totalidade perdida da vida social. Estamos divididos e talvez seja melhor assim.
O que esta experiência com os conselhos de saúde indica é que estamos longe de poder afirmar, que as articulações de interesse não têm mais espaço para se afirmarem enquanto ação coletiva, mas também não conseguimos fazer com que estas experiências não se cristalizem em composições burocráticas.
Abrimos um caminho de investigação. Agimos no sentido de mudar uma situação que excluía amplos segmentos sociais das discussões e das deliberações das políticas de saúde. Acreditamos que os conselhos de saúde possam ser esferas públicas produtoras de legitimações. Os acontecimentos continuam se sucedendo, sem qualquer ordem e sem se submeter a quaisquer represas construídas para aprisioná-los em um manual de instruções.
SUMÁRIO
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