As lutas sociais argentinas foram, ao longo das últimas décadas, balizadas por duas determinações: o protagonismo da classe operária e o peronismo como ideologia e direção política. A novidade radical dos movimentos sociais emerge no contexto de um outro espaço de prática econômica e política que vai além do controle imediato do peronismo, pelo menos da sua corrente tradicional.
A longa trajetória de rebeliões e revoltas do movimento popular argentino esteve centrada, desde 1944, no movimento operário e na participação dos sindicatos de trabalhadores, diretamente vinculados (de uma forma ou de outra) às diversas facções do movimento peronista.
A implosão da política econômica centrada na paridade entre o dólar e o peso, provocou a maior explosão de reações populares que a Argentina havia conhecido desde o Cordobazo. Assim como o período do terrorismo de Estado e as duas crises de hiperinflação no final dos anos 80 – os dois maiores traumas recentes que até hoje condicionam o comportamento da sociedade argentina – a rebelião de 19 e 20 de dezembro de 2001 instalou um marco na história do país. Isto, pela profundidade com que esses tremores abalaram a sociedade argentina, a consciência dos argentinos a respeito de si mesmos, da natureza do seu país, do significado do que viveram e vivem.
As cenas impressionantes transmitidas para todo o mundo do ímpeto insurrecional de multidões dificilmente calculáveis, na sua ira sagrada contra os bancos e contra o sistema de poder, levou os argentinos do paraíso ilusório do consumo suntuário dos bens oferecidos pela globalização, ao inferno da regressão a níveis impensáveis de miséria, de desemprego, de abandono e de humilhação.
Para um país que, com razão, havia se orgulhado de ter mantido o pleno emprego durante algumas décadas, de ter sido a sétima potência econômica do mundo, de ter tido um sistema social de apoio aos trabalhadores de dar inveja a muitos países do centro do capitalismo, de ter construído um sistema de educação e de saúde pública invejável, se ver de repente jogado no desamparo total, na quase falta de Estado e de leis, permite explicar a emergência dessa espetacular rebelião. O livro de Graciela Hopstein é uma magnífica radiografia que apresenta as suas conquistas, conflitos e impasses.
Os piquetes existem na América Latina desde as primeiras greves do ainda incipiente movimento sindical do final do século XIX porém, a expressão piqueteros se projetou em todo o mundo a partir dos acontecimentos de dezembro de 2001. Bloquear ruas, esquinas e estradas constitui um método tradicional de luta, mas ele nunca esteve tão estreitamente associado a um movimento mais amplo como com os piqueteros argentinos que fizeram dele a forma de luta que os caracteriza e lhes dá nome.
Desempregados, superando a passividade a que essa situação costuma relegar os trabalhadores expulsos, aqueles que foram demitidos dos centros fabris, começaram a reabrir empresas abandonadas pelos ex-patrões, recuperando-as e voltando a ser trabalhadores pertencentes ao exército ativo de trabalho, revelando um dos maiores segredos do capitalismo: os patrões não são necessários para que a produção se realize. Ao contrário, eles pertencem a relações de produção superadas que bloqueiam o desenvolvimento das forças produtivas.
Por tudo isso, os piqueteros argentinos se transformaram em subversivos por excelência porque se recusaram a serem marginalizados, a serem excluídos do processo de reprodução social, resgatando um dos elementos fundamentais da luta emancipatória dos trabalhadores: a capacidade de reconstruir sua existência desde baixo, desde seus espaços próprios de vida, reconstruindo suas identidades e, desde aí, definindo seus lugares de luta.
A partir desse momento, quem não entendeu o significado da luta dos piqueteros, não terá entendido a nova dinâmica da luta social na Argentina que tem uma importante projeção para tantos outros países do mundo. Porque a lógica sedentária de economias assentadas na especulação financeira torna cada vez menos atraentes os investimentos produtivos, a economia formal e o emprego com contrato de trabalho. Em suma, o capitalismo se rende cada vez mais ao lucro especulativo, à precariedade das relações de trabalho, à troca do investimento produtivo pelo especulativo, da economia informal pelos negócios ilícitos, do pagamento de impostos pelo suborno, do investimento pela fuga de capitais. E é nesse contexto que a situação dos piqueteros tende a projetar o futuro de muita gente no continente latino-americano.
Graciela produz uma análise original e indispensável dos piqueteros e sua rebelião, projetada para sua atualidade, em que se questionam até mesmo os novos territórios conquistados. Porque os elementos de força dos novos movimentos podem representar a sua debilidade ao construírem eles mesmos seus espaços de ação e se constituírem como novos sujeitos, ganhando capacidade de autodeterminação, mas ao mesmo tempo podendo ser objeto de novas formas de aniquilação. Trata-se, portanto, de um futuro aberto pela rebelião que, cheio de indeterminações, tem a capacidade de instalar fenômenos realmente novos e radicais.
Emir Sader
SUMÁRIOPontos de Partida
I. O movimento dos movimentos e os dias de ação global
II. Emergência e crise da Argentina Moderna
III. A Era Menemista e o Programa de Reformas Estruturais
Impactos do programa de reformas
IV. Resistência, desobediência e lutas na Argentina dos anos 90
V. Panelaços e ruídos: A multidão entra em ação
VI. A hora da “Comuna Argentina”: A experiência das assembléias de bairro
VII. Piqueteros: Dilemas e potencialidades de um movimento que emergiu apesar do Estado e à margem do mercado
VIII. Fábricas e empresas recuperadas: A outra cara da desobediência civil
Origem e dinâmicas do processo de recuperação produtiva
Frente à crise, a emergência de uma outra economia é possível
IX. A outra política: A nova realidade da imagem e da produção cultural argentina
Bibliografia
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