Na partição dos campos temáticos entre as chamadas ciências sociais a análise das chamadas políticas públicas tem sido historicamente uma prerrogativa da Ciência Política, mais especificamente de um subcampo homônimo de pesquisa e intervenção que lhe é específico. Por sua vez, na hierarquia dos objetos legítimos próprios à sociologia, à antropologia, à história e à geografia os temas relativos ao Estado em ação, para usar um chavão típico dos estudos das políticas públicas, ou da administração pública, da governança e das concepções de como devam ser formatadas tais esferas da vida social foram, por um bom tempo, periféricos e tratados com um grau de leveza analítica que por vezes beirou a leviandade.
Assim, a definição de um problema social e a necessidade de estabelecimento de uma tática para abordá-lo e de estratégias para sobre ele intervir por parte das agências de governo operando com fundos captados a partir do monopólio da taxação garantido ao Estado seguiu por longo tempo (e ainda segue) passos pré-dados. Tal processo foi tratado analiticamente – mesmo fora da ciência política – de acordo com protocolos já muito disseminados e partilhados, ensinados não só em cursos de ciências sociais, mas também em escolas de administração pública, de saúde pública.
Este reino privilegiado de autores/atores é com frequência um mix de consultores de governo, gestores governamentais, em geral graduados em economia, ciências sociais (em particular em certas áreas da sociologia e da ciência política – pois afinal há muitas, não?), serviço social e mesmo educação (o sub-reino dos avaliadores está prenhe deles). Tais atores/autores (sim, pois, muitos além de estarem em ação estão também em instituições de formação acadêmica, reproduzindo a si e ao seu modus operandi) se desempenham ao mesmo tempo como elaboradores de diagnósticos, formuladores de problemas sociais, implementadores de ações de governo e avaliadores de seus próprios trabalhos, numa estranha mistura de si consigo mesmos, em intrincadas redes sociais que se confundem com redes temáticas.
Esta terra é, em larga medida, estrangeira ao fazer antropológico, ainda quando este está em situações de intervenção. Se os antropólogos têm sido chamados às esferas dos poderes públicos, sobretudo desde a Constituição de 1988, com seus efeitos de instituição da crença – mais que da prática – em direitos culturalmente diferenciados, tal participação muitas vezes reproduz os cânones do subcampo das políticas públicas. Assim, de estudante hipercrítico e inexperiente de pós-graduações desvinculadas em muito da prática profissional dos antropólogos e demais cientistas sociais em espaços extra-acadêmicos, o jovem profissional passa a crítico pueril de processos complexos que não consegue alcançar analiticamente, caindo num "denuncismo fácil", a funcionário em agências governamentais ou não governamentais, ou mesmo a consultor em agências de cooperação técnica internacional, em qualquer um dos casos comprando-lhes integralmente as práticas como a verdade a ser apreendida e seus mandatos executados. Se tanto, tais profissionais passam por breves cursos de treinamento ou capacitação, modos de lhes serem transmitidas as rotinas privilegiadas a serem executadas, ainda que a prática exerça seu império na (re)formação desses profissionais de modo soberano.
Na contramão desses tipos de postura João Paulo Macedo e Castro construiu a pesquisa e os argumentos de A invenção da juventude violenta. Análise da elaboração de uma política pública. Da difícil posição de participante no mundo social que analisa – como consultor da Unesco-Brasil, uma agência de cooperação técnica internacional com ação privilegiada neste cenário -, e sem fugir aos desafios éticos e políticos de escrever a partir dessa posição, cada vez mais frequente no cenário antropológico contemporâneo, em especial se o antropólogo quer estudar os formuladores, implementadores e avaliadores. Os trabalhos sobre os "industriais" da ação pública e não sob os seus destinatários vêm se tornando mais frequentes e surgem muitas vezes das oportunidades de trabalhar e transformar, pelo estranhamento, a prática profissional em pesquisa e texto científico. Sejam estes destinatários mais ou menos chamados a participar em todo processo que sofrerão, de acordo com um dado retrato de democracia participativa, o que aqui se desvenda é como estes "pacientes" das ações governamentais (sejam estatais ou não) são eleitos como problema e transformados, por circuitos facilmente mapeáveis, em objetos de ação.
Aquilo que o modelo racionalista-prescritivo do subcampo das políticas públicas deixa de lado ou como resíduo, aqui ganha outra importância. As retóricas, as práticas cotidianas desses administradores são tomadas a sério e desnaturalizadas, sem cair na tentação de, rompendo com a ética para com seus interlocutores, colegas e informantes, acusá-los deste ou daquele enredamento como fator decisivo para que certos atores sociais sejam privilegiados em detrimento de outros.
É desta forma que este livro nos apresenta a um ator fundamental não só no caso específico que aborda, mas também em inúmeras ações de governo, estatais ou não – isto é, das administrações públicas federal, estaduais, municipais ou de organizações não governamentais, "movimentos sociais", como queiram se autodenominar e se autodenominem. Trata-se da chamada cooperação técnica internacional para o desenvolvimento, no caso específico a agência em questão sendo uma velha conhecida do campo político-cultural brasileiro: a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, com larga atuação no Brasil desde os anos 1950 sobre questões referentes à raça (dentre estas algumas pesquisas célebres) e que tem sido uma contraparte de suma importância para diversas ações, em especial para a contratação – com recursos públicos – de pessoal para ações de Estado ultrapassando os muitos obstáculos que a legislação fiscal brasileira tem imposto ao exercício dos poderes públicos num contexto democrático. Os mundos sociais do desenvolvimento, espaços da ação desses organismos transnacionais e também de diversos setores do Estado brasileiro (governamentais ou não), aparecem-nos então como cenários complexos, que para serem entendidos precisam ser historicizados e percebidos em sua ação pela via de um raciocínio multiescalar.
Ao fazê-lo, João Paulo Castro nos mostra as imensas transformações por que tal organização passou desde sua criação, numa sorte de disputa entre "franceses" e "norte-americanos", suas transformações morfológicas ao longo de décadas, e seu enraizamento profundo no contexto político brasileiro. Seguindo a trilha da invenção da juventude violenta no curso de pesquisas organizadas pela Unesco no Brasil, o autor, ao nos mostrar como pensar em "políticas públicas", não pode prescindir de pensar nesse ator, por vezes fantasmático por escolha estratégica, que é a cooperação. Em suma, para além das retóricas nacionalistas e de visões do direito internacional sobre o que seja um Estado soberano, o fato é que a ação governamental tanto quanto a não governamental no cenário contemporâneo brasileiro (e não só) não podem ser explicadas sem o desencantamento desse ator e sem que ele se torne visível e mapeável no cotidiano.
O resultado é a uma dada configuração do que seja fazer políticas públicas onde os diversos atores, os intelectuais inclusive, estão profundamente imiscuídos em meio àquilo que eles mesmos analisam, ainda que se ponham de lado e se "isentem" em seus artigos e livros. A invenção da juventude violenta. Análise da elaboração de uma política pública nos mostra a complexidade dos processos de intervenção social, sem avaliações morais denuncistas que mal traem a fraqueza de seu conhecimento sobre as situações concretas que analisam. E isto é feito por meio de movimentos metodológicos que ultrapassam as entrevistas com funcionários em postos destacados das cadeias burocráticas (ou para sermos verdadeiros – aqueles a que os antropólogos sem maiores inserções nesses mundos e sem se exporem conseguem acessar, de modo não muito distinto daquele do jornalista), que usualmente nada mais fazem do que atualizar as retóricas oficiais das instituições a que pertencem. Aqui o pesquisador posicionando-se em cena, nos dá a chance de analisá-lo em sua ação e com ele debater, posição de rara coragem.
Sem travos presumidamente neutralistas, e seguindo o melhor da observação participante para analisar este mundo letrado, João Paulo Macedo e Castro nos ensina dentre muitas outras coisas que é preciso se por na linha de tiro, onde na verdade sempre estamos, ainda que de modo infantil muito da produção antropológica contemporânea continue, agora sob lindos rótulos "novos" e "engajados", colocando-se de fora. De certo, a este nível de análise e capacidade de negociação dos resultados eticamente passíveis de apresentação estes profissionais nunca chegarão.
Antonio Carlos de Souza Lima
Laced/Museu Nacional-Ufrj
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