O estudo da cooperação técnica internacional para o desenvolvimento tem sido um tema característico das áreas disciplinares das relações internacionais, da sociologia política e da ciência política. Em momentos mais recentes, antropólogos têm se debruçado sobre alguns dos aspectos dos inúmeros processos histórico-sociais, formas organizacionais, regimes discursivos e estilos performáticos que se condensam nesse mundo social e dispositivo de poder que carrega o rótulo mais frequente de cooperação técnica. Em geral, têm-no feito tomando-os do ângulo dos processos envolvidos na globalização, como parte da ampla constelação do desenvolvimento, como formas de (neo)colonialismo ou, ainda, a partir de análises de agências específicas, às vezes marcadas por um instrumental teórico-metodológico alicerçado na antropologia social, mas extemporâneo em relação ao universo temático e às problemáticas efetivamente suscitadas. Sem dúvida, há muitas pesquisas em curso nessa direção, alguns títulos dessa mesma coleção lidando diretamente com esse espectro temático.
No presente livro, Renata Curcio Valente parte das definições e posições intelectuais mais frequentes de cooperação técnica internacional para o desenvolvimento para, reelaborando-as, propor uma abordagem a partir da antropologia que se viabilizou na pesquisa sobre a Agência de Cooperação Técnica Alemã (GTZ) em sua atuação na demarcação de terras indígenas no Brasil. Baseado na leitura de documentos escritos, na descrição de eventos públicos, na observação etnográfica e em entrevistas, o livro rompe com o teor de análises frequentes que estabelecem visões dicotômicas que oscilam da total "aprovação" à total "condenação" das ações da cooperação para o desenvolvimento.
Para tanto, a autora recupera criticamente a literatura produzida pela área de relações internacionais sobre o fenômeno da cooperação técnica internacional para o desenvolvimento, aborda alguns mitos do mundo do desenvolvimento – e dos estudos sobre o mesmo – os relê e busca os fios para tecer uma análise antropológica que não os despreze e possa absorvê-los em outra chave. O passo seguinte da análise é historicizar a cooperação e seu espaço no Brasil. Com isso, nos mostra a profundidade temporal de certas práticas tanto no Brasil quanto na Alemanha, para então entrarmos no cenário mais específico de relações recentes entre cooperação alemã e dispositivos de governo no Brasil (sejam os ditos governamentais, sejam os ditos não-governamentais). Suas práticas, estilos e experiências assomam ao mesmo tempo como singularidades e partes de um mundo mais abrangente.
Isso é feito suspendendo os juízos de valor acerca da atuação da cooperação técnica, mas sem perder uma preocupação analítica crítica. A GTZ no Brasil. Uma etnografia da cooperação alemã para o desenvolvimento nos apresenta a história das intrincadas redes de relações de que participam brasileiros e alemães e que viabiliza(ra)m a instalação do aparato institucional das ações de cooperação. Mostra, assim, que a presença alemã – ainda que comporte, amplie e reproduza assimetrias – foi desejada e explicitamente demandada por um conjunto de atores, estes também beneficiários de trocas assimétricas. De um mundo de preto versus branco, podemos perceber um universo de mil matizes cinzentos e o quanto, sem a presença da cooperação, as ações demarcatórias teriam sido virtualmente impossíveis, ao menos no formato em que se deram.
É desse ângulo que o estudo da atuação da GTZ nesse campo específico – o das políticas indigenistas – é feito, como uma das muitas pesquisas possíveis para a apreensão de uma história rica e abrangente sem cujo entendimento não podemos abordar com coerência inúmeros aspectos do Brasil rural desde, ao menos, a década de 1970. Ao fazê-lo, Renata Curcio Valente permite pensar, aos que conhecem a GTZ apenas de sua atuação no campo socioambiental a partir dos finais da década de 1990, o quanto se desconhece de tantos cenários que se entrecruzam em diferentes escalas na contemporaneidade.
Concebendo as ações de cooperação como relações de poder, a autora destaca a dimensão de positividade do poder, seu caráter instituinte, mostrando como surgiram novos horizontes e conhecimentos, tanto para brasileiros quanto para alemães, a partir desse processo de interação específico. Renata Valente destaca em especial os fluxos de conhecimentos, a transmissão de um aparato tecnológico de gestão, mas também o acúmulo de novas experiências por parte dos cooperantes, em especial as de operação na dimensão fundiária indígena. O caráter ritualístico, pedagógico e assimétrico (embora tal assimetria não esteja onde muitas vezes as leituras "denuncistas" a vejam) das relações de cooperação, quaisquer que sejam, pode então assomar.
A GTZ no Brasil coloca também à leitura dos antropólogos, e ao mercado editorial brasileiro, os desafios de se produzir etnografias eticamente corretas frente aos, e com consentimento dos participantes do mundo social analisado. Afinal, aqueles de que trata não apenas ocupam posições de prestígio e poder na hierarquia social, mas também têm os meios intelectuais necessários a ler, criticar e contraditar o trabalho produzido, apresentando-lhes questões em pé de igualdade ou mesmo de superioridade. E é bom que assim seja. Tais aspectos não são nada desprezíveis, em especial em pesquisas envolvendo agências e agentes dotados do perfil daqueles aqui analisados, e fazem com que a solução (mágica, por vezes) de denominar "interlocução" à relação entre pesquisadores e pesquisados, como hoje fazem alguns antropólogos, na perspectiva de neutralizar efeitos inevitáveis da abordagem científica, precise ser sopesada. Sua publicação contribuirá, pois, para que o público leitor conheça os modos pelos quais o trabalho foi possível, permitindo-nos ampliar o escopo das discussões metodológicas sobre a dita "cooperação", bem como de estudos de elites em posições de poder, sobre os processos de formação de Estado no Brasil (só perceptíveis em múltiplas escalas), dentre muitas outras coisas.
O resultado é um texto denso, com profundidade analítica e empírica, que reconhece os trabalhos prévios sobre o tema e a diversidade de posições sobre o tema que aborda. Prova da obstinação e reflexividade de sua autora, A GTZ no Brasil. Uma etnografia da cooperação alemã para o desenvolvimento é uma contribuição fundamental aos estudos acerca do mundo do desenvolvimento para além do ensaísmo, de certo construtivo, mas limitado pela parca presença de dados que só a investigação empírica densa e prolongada pode prover.
Antonio Carlos de Souza Lima
Laced/Museu Nacional-Ufrj
Parte I Cooperação Técnica Internacional: mapeando sua trajetória
Parte II Práticas e saberes administrativos da GTZ
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